domingo, 14 de março de 2010

A Ilha do Medo - terror psicológico e sanidade nas mãos de Scorsese





A Ilha do Medo é um destes filmes sobre os quais quanto menos se falar, melhor, pois sua relação com o público depende justamente da aceitação de sua premissa: dupla de policiais vai a uma ilha-prisão para criminosos violentos e mentalmente perturbados investigar o estranho desaparecimento de uma detenta.
Na superfície, é isso. O que está abaixo e além dela é que vai tornar o filme assustador. Parte da crítica caiu de pau em Scorsese, movida por um certo preconceito da chamada "ditadura do autor", que defende a manutenção de temas e estilos a cada obra de um cineasta considerado mais autoral.
A Ilha do Medo não se filia diretamente ao Scorsese de Taxi Driver e Touro Indomável, por exemplo. Não tem relação direta com as crônicas da história americana, como Gangues de Nova York e O Aviador. Muito menos ao território que consagrou o diretor, o gangasterismo cru de Caminhos Perigosos, Os Bons Companheiros e Cassino. Está mais para um filme de gênero, como Cabo do Medo. (em todas estes filmes, o cineasta sempre procurou explorar a violência, ora de forma mais sutil, tratando do indivíduo, ora tentando explicar a influência do meio, ora apenas a retratando como parte da natureza humana).
Scorsese é daqueles diretores que emergem nos anos 70 trazendo para o cinema americano um caminho bastante pessoal, que mescla o domínio das convenções de gênero da era de ouro de Hollywood, um conhecimento enciclopédico da história do Cinema, inclusive dos filmes B, mais as inovações formaies do cinema de arte europeu.
Tudo isso se mantem em sua filmografia e está devidamente espelhado em A Ilha do Medo: as referências ao suspense de Hitchcock (sobretudo Vertigo), os códigos narrativos e visuais dos policiais noir dos anos 40, uma citação explítica a The Manchurian Candidate (Sob o Domínio do Mal), a montagem vertiginosa, a câmera em permanente movimento, interferindo e determinando o jogo de olhares dos personagens.
Se o filme cabe dentro de um gênero, dado o imenso rol de relações que estabelece com o próprio cinema, seria o do terror psicológico. Na primeira imagem do filme, vemos uma barca saindo de uma densa neblina. Nela está o agente de Leonardo de Caprio (um sujeito que melhora a cada parceria com Scorsese) enjoado com o mar. Esta atmosfera de desconforto, típica do noir, é reforçada na chegada à ilha: psiquiatras e policiais encobrem a verdade sobre o sumiço da detenta, em um ambiente misterioso. É aí que Scorsese cria uma iconografia assustadora: a chuva que bate na janela, a tempestade que destrói edifícios, corredores escuros que deslocam o filme do mistério policial para os limites da sanidade humana.
Então chegamos finalmente ao território propriamente dito da obra, onde as pontas soltas na primeira parte começam a fazer sentido, inclusive dando uma ordenação à sensação de caos de citações visuais, narrativas e políticas (o filme se passa em 1954, período fértil da caça ás bruxas macarthista).
Assistir ao trabalho de um grande cineasta que opta por uma produção, digamos, menos afinada com seus trabalhos anteriores em tema e estética, é sempre uma grande diversão. Ainda que não tenha feito um de seus filmes de expressão mais pessoal, A Ilha do Medo é um grande filme, desses que abre muitos caminhos (ao ponto de confundir o espectador) para explorar com profundidade o mais estranho e assustador deles, justamenete o que questiona a loucura como teatro legítimo para a sobrevivência.

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